1. |
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BOM MARMANJO
Eu tenho um amigo chamado José
Desses que até
Dançam só para ti
Tem duas asas que roubou de um anjo
É um bom marmanjo
Não passa daí
Às vezes faz doces e passa por cá
Pergunta quem está
E embrulha um sorriso
Eu estendo a toalha nas tábuas do chão
Comemos à mão
Sem dó nem juízo
Eu tenho um amigo chamado José
Bonito que até
Encanta sereias
Tem um jeito fino, um jeito qualquer
Que qualquer mulher
Se põe com ideias
Dizem que tem lábia de fora-da-lei
Eu, isso não sei
Nem vou por aí
Só sei que me abraça se tremo, se choro
Só sei que o adoro
Não passa daí
j. monge
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2. |
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AMOR É BICHO
Amor é bicho que acasala pelas veias
Espalha cuspo, espalha teias
Espalha-brasas no palato
Amor é bicho com asas até à lua
Lua nova, lua nua
E nunca usa sapato
Amor é bicho faz-de-conta-que-tem-pé
E sabe sei lá o quê
Dos caminhos da razão
E tem razão, não liga puto pra isso
Não tem sorte nem enguiço
Só estrada no coração
É coisa de homem
É coisa de mulher
É coisa de qualquer
Que é bicho de quem quiser
Amor é bicho que quer colo a toda a hora
Que é feliz se anda à nora
Que come e bebe suor
Tem língua fina com estrelas no céu-da-boca
É bicho de pouca roupa
Mas podia ser pior
É coisa de homem
É coisa de mulher
É coisa de qualquer
Que é bicho de quem quiser
j. monge
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3. |
"Salvação" com Ana Deus
04:26
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SALVAÇÃO
Já andei à flor da vida
Sem ‘ma vivalma ao redor
São dias de recaída
Para me perder melhor
Ouvi uma pedra falar
Para eu não ir por aí
Pois qualquer pedra ao rolar
Vai ao encontro de ti
Aquele que já passou
Mal de amor e não sofreu
É só porque nunca amou
E não sabe o que perdeu
Não te vás agora embora
Partilha o teu azedume
Deita tudo cá para fora
Beija-me e dá-me lume
Já vi uma pedra morrer
De solidão no deserto
Só por não querer nem saber
Que alguém andava por perto
Aquele que já passou
Mal de amor e não sofreu
É só porque nunca amou
E não sabe o que perdeu
Já sabes o que eu vivi
Salva-me e não digas nada
Dá-me uma parte de ti
Eu dou-te a minha morada
j. monge
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4. |
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SOLSTÍCIO
Se o coração se revolta
Volta a bater do início
O meu vestido dá volta e lá volta
Ao milagre do solstício
Abre a flor que trazes no peito
Nada volta a ser o que era
Sei que gostas do jeito, do meu jeito
De te dar a primavera
Andamos a sós no mundo
Mas somos da multidão
Que tira a roupa à romã
À maçã
E amanhã tira a roupa ao coração
Somos filhos da noite crua
Deitados num estandarte
Damos um tiro na Lua
E quando a manhã desagua
Fazemos um filho em qualquer parte
Não temos regras nem tino
Nada em nós é sagrado
Não somos filhos de um hino e o destino
Não é para aqui chamado
Não temos regras nem tino
Nada em nós é sagrado
j. monge
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5. |
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PORQUE É QUE O MAR É AZUL?
Porque é que o mar é azul?
É da sua verdade?
Ou será que se fez tão azul
Pela nossa vontade?
Que cor podia ter?
Como o podia pintar
Se não pudesse ver o azul
Cá dentro a saltitar?
Corre na areia
Salpica o teu vestido
Ouve a maré-cheia
Cantar baixinho ao ouvido:
É tão simples: O mar é azul
(Nada é mais natural)
Talvez o pó das estrelas
Fosse azul-primordial
O mar da razão
Só chega onde pressente
O mar que está na tua mão
Vai sempre mais à frente
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6. |
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choro da vã filosofia
Eu não sei dizer se o mar me vê
Mas de onde estou eu vejo o mar, eu vejo
As ondas vão e vêm
E dançam a dança do sal
E o sol distante tudo vê e nada diz
Quer brilhar e só
Não sonha ser feliz
Quero ser o sol
Tudo ter
Calor e luz e eternidade
Eu não sei dizer se o mar me vê
Mas de onde estou eu vejo o mar, eu vejo
O temporal que vem
E afoga o sonho
Um barco leve que o vento sopra
Enquanto eu afago o meu desejo
E rego distraído
Flores da estação, quem
Vive na memória
Como um quadro na parede dói
Sangue da vitória
Não basta ao herói
Sei do mal, da solidão
Da dor do amor
E a minha canção sabe o sabor
Da tal felicidade
Que se esconde
E mais ninguém vê
Vem andar junto comigo
Agora que dorme a cidade
Toda madrugada é um cinema
Na escuridão a luz soa verdade
E onde o sol brilhou
No céu azul só há
Vestígios de algum luar
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7. |
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À BEIRA DA MINHA RUA
À beira da minha rua
Bateu um mar pequenino
Era o regaço da Lua
À beira do meu destino
Dobrei a voz com as mágoas
E dela fiz um barquinho
São águas, Senhor, são águas
Deixai este meu caminho
Fechei os olhos ao mar
Que ele me leve a perder
Este jeito de cantar
Tem esta forma de ver
Tão longe vai o barquinho
Que até o mar continua
Parte e regressa sozinho
À beira da minha rua
j. monge
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8. |
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ESPINGARDAS E LENÇÓIS
Vê lá
Bem os terrenos que pisas
Eu sei o que tu precisas
Meu bandido
Tu vê lá
Eu já fui uma menina
Que deu pontapés numa mina
Sem chamuscar o vestido
Deu-me na gana
Pior não há…
Vê lá
Eu não quero anjos da guarda
Já comprei uma espingarda
E uma flor
Tu vê bem
Eu não pertenço a ninguém
Saio ao lado da minha mãe
Que só se dá a alguém
Que tenha a gana
Do meu amor
Deixa-me armar a tua espingarda
Pôr a flor no teu vestido
O nosso amor tem mostarda
Já é crescido
Vamos fazer uma casa ao sol
Com escadas no teu lençol
À porta um sonho em guarda
Sempre em sentido
Vê lá
Mede os contras e os prós
Vão falar muito de nós
Em surdina
Tu vê bem
Que este ar de fora da lei
E a raiva que eu não sei de onde vem
Esconde uma menina
Com uma espingarda
Que era da mãe
j. monge
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9. |
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MULHER SÓ
Se eu fosse mulher só
de feijão e pão-de-ló
de bordado e avental
e de pôr a roupa ao sol
Estava caída por ti
que és só de jiripiti
de batota e futebol
Se eu fosse mulher só
de Chanel e rococó
de boleia nas revistas
que são bíblia de trajar
Embrulhava um modelo
desses que não têm pelo
e levava-o pra brincar
Mas eu gosto da chuva
de molhar os pés no mar
de misturar pele e uva
nos intervalos de amar
Se eu fosse mulher só
de janela, de laró
A antena lá da rua
rainha do diz-que-diz
Não queria saber de mim
casava com um pasquim
e talvez fosse feliz
Mas eu sou só uma mulher
que já viu gente viver
por uma causa que crê
por um livro que não leu
Se tu já viveste assim
compra uvas e alecrim
e depois leva-me ao céu
É porque eu gosto da chuva
de molhar os pés no mar
de misturar pele e uva
nos intervalos de amar
j. monge
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10. |
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CREDO INTEIRO
Creio na vida antes da morte
e nas flores do deserto
Creio em tudo o que está perto
do meu sonho inicial
Creio que o amor principal
pode ser a nossa sorte
porque é assim que está certo
Creio na fonte após a seca
e na Terra que engravida
das sementes que lá pomos
antes da morte. Na vida
Creio no amor completo
No mar que tudo rodeia
Todo o futuro é ideia
Fruta verde à nossa espera
- não é sonho, nem quimera –
É o destino suspenso
Por isso, amor, quando penso
em nós os dois à deriva
escondo-me, faço-me esquiva
para que lutes por mim
Brinques sempre à cabra-cega
com a flor que se entrega
no canteiro do jardim
Creio nos gatos vadios, como nós
e na maçã do pecado
Creio que os nossos avós
nos deixaram de legado
a liberdade das aves
para na escuridão das caves
darmos o grito dos nus
Gritarmos o nosso nome
e assim darmos à luz
o amor depois da fome
Creio nos lobos matinais
e nas corujas soturnas
Creio que em tudo são iguais
a nós e aos demais
com um papel bem passado
Um destino desenhado
a cores que são noturnas
mas no fundo iluminado
p’lo nosso brilho solar
Porque este amor sem receio
dá-me razão no que creio
Dá-me a porta de saída
para esse estranho lugar
que é feito só de sonhar
Creio na vida! Creio na vida!
Creio na casa abandonada
Creio na praia abandonada
Creio em nada, nada, nada
Creio num pouco de vazio
Creio num pouco de fastio
E quero engravidar disso tudo
Mãe das plantas e das aves
mãe da escuridão das caves
onde os deuses estão à mercê
Porque eu sou só uma mulher
que já viu gente viver
por uma causa que crê
j. monge
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11. |
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BALADA DO CANSAÇO
eu sei que ele vai chegar cansado
meio azedo, meio vidrado
com a barba por fazer
vai espalhar o esqueleto na cadeira
dizer mal da vida inteira
sem vontade de comer
depois vai procurar no meu regaço
o seu pequeno espaço
onde pode ser menino
vai chorar em cima da minha saia
para que a tristeza caia
na escuridão do destino
é só mais um dia desta vida
que se não tiver saída
ainda nos temos a nós
então lambuzamo-nos em beijos
em promessas, em desejos
e vingamo-nos a sós
e mortos desse cansaço bonito
matamos o que é maldito
de mais um dia sem esperança
eu sei que amanhã volta cansado
meio azedo, meio vidrado
mas depois vai ser criança
j. monge
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12. |
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ARROZ DOCE
Vou fazer arroz doce de babar
Daquele da mais antiga colheita
Como não quero ninguém a augar
Toma atenção que eu vou dar a receita:
É só cozer arroz em água e sal
Juntar açúcar, cascas de limão
Pau de canela, leite e manteiga normal
E mexer tudo com o coração
Mexe até ficar creme de avó
Bate gemas à parte na tijela
Para que não talhe e não dê um nó
Junta duas colheres da mistela
Tira o pau canela e o limão
Deixa cair as gemas lentamente
Que tudo cumpra bem essa função
De pôr o nosso amor em arroz quente
E quando escorrer ao jeito do mel
Deixa arrefecer numa janela
Para que o nosso amor sinta na pele
Escreve o nome dele com canela
Há quem faça sem ovos e babe
Até há quem ponha Mandarim
Cada qual sabe àquilo que sabe
É bom mas não é arroz para mim
Arroz doce é quase pecado
Que pinga em qualquer lapela
Não te esqueças do recado:
Escreve o nome dele com canela
j. monge
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13. |
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ILHÉU DE CONTENDA
Ilha do fogo e da calma
Das manhãs quentes de café
Sedenta da cor da alma
Exausta da cor da fé
Em cada flor um milagre
Acende o sonho por momentos
Há sempre um espinho mais acre
Em qualquer rosa-dos-ventos
Bandeira de S. Filipe
Festa da terra. Gratidão
Um lado diz-me que fique
O outro diz-me que não
La barca de mi destino
Já fez a última partida
Como se o Mundo em menino
Desse um porto a cada vida
A porta desta morada
Tem uma estrada para o mar
Entre o destino e mais nada
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14. |
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PEQUENA MORTE
Tens uma bala nos olhos
Atiras sempre a matar
A minha saia de folhos
Conhece bem esse olhar
Não dás troco para a treta
De um amor e uma cabana
Tens o fogo de um cometa
E a lábia de um sacana
Dizes que andas à míngua
De coração do avesso
Trazes na ponta da língua
Um fado que eu já conheço
Mas chegas de qualquer parte
E ditas a minha sorte
Só me apetece matar-te
Depois da pequena morte
Pela pinta és um senhor
Ninguém te leva de cana
Dás ares de pinga-amor
Com a lábia de um sacana
Chamas-me sempre baixinho
Como se fosse um segredo
Misturas sangue e carinho
É isso que mete medo
De perder o pé no mundo
Ver do que somos capazes
Quero ver-te bem no fundo
Pra depois fazer as pazes
Mas chegas de qualquer parte
E ditas a minha sorte
Só me apetece matar-te
Depois da pequena morte
j. monge
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15. |
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NÃO SE PAGA
Paga-me um copo, paga-me um abraço
Diz-me que tens uma vaga
Paga-me um pouco do teu pouco espaço
E essa conta não se paga
Fica por conta de sermos iguais
O coração tem sempre dois lados
O que ouve e sofre como os animais
E entre nós não há fiados
Paga-me um copo, paga-me um abraço
E essa conta não se paga
Há dias em que só quero partir tudo
Morder o luar, brincar ao toca e foge
Há dias em que acordo já cego e mudo
Paga-me um copo e diz-me que dia é hoje!
Fico a dever-te uma dor por sarar
O coração tem sempre dois lados
O que ouve tudo e o que não tem vagar
E entre nós não há fiados
Paga-me um copo, paga-me um abraço
E essa conta não se paga
j. monge
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Manuel Paulo Lisbon, Portugal
“O Assobio da Cobra 2” é o segundo capítulo de uma banda sonora de um filme por realizar. São 15 histórias emocionantes que inspiram a celebração do amor, de um amigo, da dor ou, porque não, de uma receita apaixonada de Arroz Doce.
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